quinta-feira, 15 de junho de 2017

ANATOMIA DOS AFETOS

ANATOMIA DOS AFETOS
Silvia Moura tem um espetáculo que se chama “Anatomia das coisas encalhadas”. Nele, Silvia dança sobre o afeto que ela sente pelas coisas que encalharam no desuso, que nasceram apenas para sobrepor outras coisas de fins mais importantes: as embalagens. Daí ela tem montes de caixas de pasta de dente, fósforos, remédios. Para ela, no espetáculo, não basta a importância da essência. O que envolve a essência é também importante. É o apego sem sentido ao sentimento pelas coisas, e por isso mesmo verdadeiro: apego, este sentimento da mesma natureza do encanto, da paixão, do amor, não tem nunca sentido, apenas direção e força. É natural que seja assim. Portanto, observo em mim a anatomia dos meus afetos. Não das coisas encalhadas. Mas dos meus afetos: observei numa tarde de estudos qualquer que eles me rodeiam, e representam pedaços simbólicos de pessoas por quem eu tenho desperto um afeto às vezes calmo, às vezes vulcânico. Descansando no meio de um livro, tenho o marca páginas que Italo fez para mim. É um marca páginas de papel, com folhas secas coladas nele e troncos pintados à lápis de cor. Olho para esse marca-páginas e lembro-me de Ítalo. Sinto-me bem ao saber que ele tenha feito algo pensando em me dar. Sem uma lógica específica para encontrar os outros pontos da minha anatomia dos afetos, passo meus olhos pelo quarto e vejo de relance “Ovelhas Negras”, livro de Caio Fernando Abreu, que um namorado, Gabriel, me deu à época que namorávamos. Estranho lembrar que, a primeira vez que peguei aquele livro, meu corpo transbordava de uma paixão vulcânica, cega e desesperada por aquele meu namorado. Os contos que tem naquele livro hoje, para mim, que já me preenchi de estilos de outros autores, são por demais piegas, e facilmente encontro outros livros mais bem escritos, mas basta que eu os leia hoje, os contos de Ovelhas Negras, que eu me lembro da verdade que eles tinham para mim há 7 anos atrás, já que todos os contos são sobre carência, paixão vulcânica e desesperada: coisas que para um adolescente às vezes por ser a maior verdade. Guardo atrás de minha porta uma pedra de quase 4 quilos que trouxe na mochila de uma viagem à Guaramiranga em 2014. Há nela a data pintada de tinta branca. Olho para aquela pedra e penso no tempo: pedras me fazem ser tomado quase que completamente de uma viagem existencial que abrem abismos na minha consciência. De 2014 para cá a pedra continua silenciosa e incólume. Eu, de 2014 para cá, sou o exato contrário da pedra: dela não tenho o silêncio, não tenho a forma acabada e intacta, não tenho a dureza. Tenho talvez apenas o mistério da existência em mim, que é o mesmo mistério da existência que há na pedra. Às vezes esqueço, mas tenho em mim a consciência que às vezes vem à tona: meu corpo é parte dos genes que foram dados a mim por meus pais. Sou um pouco eles. Ganhei de minha mãe o formato do nariz e dos olhos, de meu pai a cor dos cabelos e o excesso de pêlos no corpo. Sou, eu também, fisicamente, um aglomerado de coisas que foram constituídas de outros. Nada é unicamente meu tanto por dentro quanto por fora. Tenho no verso de uma folha riscada, um desenho de Maik, o meu amigo escritor. No desenho há um casal de pessoas nuas e de olhos fundos e tristes. Maik conhece bem a secura da vida, e não conheci até agora ninguém melhor do que ele capaz de expressá-la de forma tão maldita e maravilhosa quanto ele expressa em seus textos e seus desenhos. De João Mário tenho uma camisa, uma cueca roubada e a lembrança de temperos fortes, de Peterson uma miniatura de Pikachu, de Leonardo dois casacos nunca devolvidos, de Ely alguns livros presenteados, de outras pessoas não menos importantes meias, pesos de papel, agendas. O trabalho de Silvia, por exemplo, agora, foi o que deu a mim a consciência das pequenas coisas que constituem o atlas anatômico dos meus afetos. Se eu lembro bem, vou enxergando as coisas que tenho e percebo que muito pouco foi primeiramente meu. Quase tudo o que tenho de importante para mim me foi doado. Tudo o que eu mesmo consegui de mim mesmo não dou muito valor. O resultado da soma de mim mesmo comigo não me interessa tanto quanto o resultado da soma dos outros comigo. Como os componentes de qualquer anatomia, esta não é simples, mas muito complexa. Não quero me estender a cada um dos elementos. Vislumbrar esta verdade, para mim, é, afinal de contas, mais importante que dissecá-la.

Por Tiago Castelo

Nenhum comentário:

Postar um comentário